As
críticas públicas da gestão Jair Bolsonaro à proposta da Pfizer para venda de
vacinas contra covid-19 foram vistas por especialistas como atestado da
inabilidade em pôr de pé um plano amplo e eficiente de imunização. O temor
agora é que a guerra de narrativas afaste outras farmacêuticas com quem o
Ministério da Saúde ainda poderia obter mais doses, num momento de alta de
casos e óbitos.
A
pasta de Eduardo Pazuello divulgou no sábado nota acusando a Pfizer de buscar
“marketing” na negociação e indicou pontos que, na visão do governo, pesaram
contra o acordo com a farmacêutica americana. Esses obstáculos são contestados
por especialistas. A Pfizer não comenta. A sucessão de trapalhadas do governo
na pandemia levou partidos a discutirem o impeachment do presidente da
República.
Uma
das razões citadas pela pasta é o fato de a Pfizer só ter acenado com dois
milhões de doses no 1º trimestre. “Para o Brasil, causaria frustração”, disse a
Saúde, “pois teríamos, com poucas doses, que escolher, num país continental com
mais de 212 milhões de habitantes, quem seriam os eleitos a receberem a
vacina”, prosseguiu.
Mas
Pazuello foi na última sexta-feira ao Aeroporto de Guarulhos para recepcionar a
mesma quantidade de doses da vacina Oxford/AstraZeneca que o ministério importou
da Índia para acelerar a imunização, após o governador de São Paulo, João Doria
(PSDB), sair na frente com a CoronaVac.
Em
2020, o governo chegou a negociar com a Pfizer 70 milhões de doses para 2021,
mas a compra não avançou e o Brasil perdeu lugar na fila, apesar de alertas da
farmacêutica para a alta demanda. “Dois milhões de doses (da Pfizer) eram pouco
em setembro, (mas) sexta-feira recriaram uma ‘fonte luminosa’ e um ‘coreto’
para receber a mesma dosagem (da Oxford”, criticou o epidemiologista Paulo
Lotufo, da USP, no Twitter.
“Foi
tomada decisão consciente. Não negociaram, mas não previram que isso ia gerar
muitas críticas”, diz o professor do Insper e doutor em Economia Thomas Conti.
“Minha maior preocupação é que desviar a responsabilidade para o laboratório
pode afastar outros fornecedores. O governo politizou a relação com a Pfizer. ”
A
vacina da Pfizer tem logística complexa, pois precisa ser armazenada entre 70°C
a 80°C negativos. Lotufo, porém, listou medidas que permitiriam aproveitar as
doses, como enviar lotes de vacina a capitais do Norte e fazer aplicações em
hangares e salas de aeroporto, esvaziados na pandemia. Para ele, esse plano
dispensaria “superfreezers”, pois as doses sairiam da caixa térmica diretamente
para o braço das pessoas. “Se (o envio dasdoses) ocorresse em dezembro, hoje a
catástrofe estaria minimizada no Norte”, escreveu.
Carla
Domingues, epidemiologista e chefe do Programa Nacional de Imunização (PNI) de
2011 a 2019, diz ser difícil avaliar o contrato, pois a íntegra não foi
divulgada, para ver se há “cláusulas leoninas e abusivas”, como diz a Saúde.
Mas questiona o fato de sermos o único país a ter problema para negociar com a
Pfizer, enquanto americanos e europeus compraram. “A dificuldade é porque o
Brasil não se planejou para essa vacina, de enorme complexidade. ”
Conti
ainda vê inconsistências na fala do governo: entraves como a ausência do
diluente (que seria soro fisiológico comum) e de reposição do gelo seco para
manter frascos na temperatura correta seriam resolvidos com planejamento. Sobre
eximir a fabricante de responsabilização civil em caso de efeitos adversos, ele
diz que essa cláusula já existe há décadas em países desenvolvidos, inclusive
para outras vacinas, e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Fundo
Nos
Estados Unidos, o Programa Nacional de Compensação por Danos de Vacinas existe
desde 1988 e indeniza quem eventualmente sofra efeitos colaterais após tomar
vacinas cobertas pelo fundo (como as de difteria, tétano e hepatite A e B). De
2006 a 2018, foram aplicadas 3,7 bilhões de doses, e só 5.317 compensações
pagas.
O
fundo, diz Conti, foi criado após uma onda antivacina ter aumentado ações
contra farmacêuticas, desestimulando a fabricação e reduzindo a oferta de
imunizantes. Para ele, o Brasil poderia criar um fundo similar.
As
informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Segunda-feira,
25 de janeiro, 2021 ás 10:15