Em
um estudo divulgado na plataforma medRxiv, pesquisadores brasileiros deram os
primeiros passos para entender por que algumas pessoas são naturalmente
resistentes à infecção pelo novo coronavírus.
O
trabalho se baseou na análise do material genético de 86 casais em que apenas
um dos cônjuges foi infectado pelo SARS-CoV-2, embora ambos tenham sido
expostos. Os resultados – ainda em processo de revisão por pares – sugerem que
determinadas variantes genéticas encontradas com maior frequência nos parceiros
resistentes estariam associadas à ativação mais eficiente de células de defesa
conhecidas como exterminadoras naturais ou NK (do inglês natural killers).
Esse
tipo de leucócito faz parte da resposta imune inata, a primeira barreira
imunológica contra vírus e outros patógenos. Quando as NKs são acionadas
corretamente, conseguem reconhecer e destruir células infectadas, impedindo que
a doença se instale no organismo.
De
acordo com a coordenadora do Genoma USP, Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Mayana Zatz,
a hipótese é que as variantes genômicas mais frequentes nos parceiros
suscetíveis levem à produção de moléculas que inibem a ativação das células NK.
“Mas isso é algo que ainda precisa ser validado por meio de estudos
funcionais”, diz Mayana que também é professora do Instituto de Biociências da
Universidade de São Paulo.
A
identificação dos casais e a coleta de material dos voluntários para o estudo
foram conduzidas pelo bolsista de pós-doutorado da Fapesp Mateus Vidigal. “O
primeiro passo foi fazer um teste sorológico para excluir da amostra eventuais
casos assintomáticos [pessoas que, na verdade, haviam sido infectadas, mas não
apresentaram sintomas]. Após a triagem, restaram 86 casais de fato
sorodiscordantes, ou seja, em que apenas um cônjuge carregava no sangue
anticorpos contra o novo coronavírus”, relata Vidigal.
Enquanto
no grupo dos suscetíveis havia uma maioria de homens (53 contra 33), as
mulheres predominavam entre os resistentes (57 contra 29). Vidigal destaca que
a pesquisa foi conduzida antes do surgimento das novas cepas do SARS-CoV-2,
consideradas mais transmissíveis. “Não temos certeza de que os achados seriam
os mesmos em pessoas expostas à P.1., por exemplo”, pondera.
Apesar
de não ter feito parte do estudo, a escaladora de voos Victória Mesquita de
Sousa, de 23 anos, conta como o marido foi infectado pelo novo coronavírus, e
ela, não. Segundo Victória, em um fim de semana, ambos foram à casa dos pais
dele. “Tive contato com eles, nos abraçamos, minha cunhada até espirrou perto
de mim. Uma semana depois, minha sogra e a cunhada informaram que tinham
testado positivo e até passaram mal com sintomas."
Victória
lembra que, então, ela e o marido foram fazer os exames. “Continuamos temos
contato normal, dormimos na mesma cama, bebemos no mesmo copo, não tivemos uma
separação, não fizemos isolamento. Só o Rafael testou positivo. Ele ficou
febril, teve dor de cabeça, perda de paladar, dor no corpo, nada muito forte, e
tosse, que foi o que permaneceu mesmo depois de um mês. E eu não senti nada, e
meu exame deu negativo. Ficamos isolados do trabalho, mas eu continuei
trabalhando de casa. Ajudei a cuidar dele, fiquei junto com ele o tempo inteiro,
” O marido de Victória, o controlador de voos Rafael Barbosa de Oliveira, de 33
anos, foi infectado em fevereiro deste ano.
De
acordo com Mayna Zatz, o fato de a resistência ao SARS-CoV-2 ser uma
característica relativamente comum na população – diferentemente do HIV,
causador da aids, por exemplo – fala a favor de uma herança genética complexa,
na qual muitos genes estão envolvidos.
“Isso
significa que, para achar algo significativo ao olhar o genoma como um todo,
seria preciso ter uma amostra gigantesca, com mais de 20 mil voluntários.
Decidimos, então, focar em dois grandes grupos de genes relacionados com a
resposta imune: o complexo principal de histocompatibilidade [MHC, na sigla em
inglês] e o complexo de receptores leucocitários [LRC]. São os genes do MHC que
definem, no caso de um transplante, por exemplo, se dois indivíduos são
compatíveis, ou não”, explica a pesquisadora.
Mesmo
com esse filtro, a tarefa estava longe de ser trivial. Alguns dos genes que
integram os dois complexos chegam a ter mais de 7 mil formas alternativas,
também chamadas de polimorfismos. Um exemplo de polimorfismo são os diferentes
tipos sanguíneos. Existem quatro variantes genéticas dentro do sistema ABO: A,
B, AB e O. No caso dos complexos MHC e LRC, alguns genes têm milhares de
variantes”, ressalta a pesquisadora.
Para
ajudar na empreitada, o grupo do IB-USP estabeleceu colaboração com Erick
Castelli, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual
Paulista (Unesp), em Botucatu. Recentemente, com apoio da Fapesp, Castelli
desenvolveu métodos computacionais que facilitam o estudo dos complexos MHC e
LRC.
“Imagine
que você está tentando montar um quebra-cabeça [o genoma] com base em uma única
referência, mas há várias peças muito parecidas e milhares de possibilidades
para a mesma peça, com alterações muito sutis entre elas, tornando impossível
saber onde cada uma se encaixa. O algoritmo se baseia em milhares de sequências
já descritas para esses genes para decidir o local de cada peça, fazendo a
montagem do genoma de forma muito mais detalhada. O método também permite
inferir qual é a sequência de cada cromossomo e qual proteína seria produzida a
partir de cada gene”,diz Castelli.
A
análise do complexo MHC indicou que variantes de dois genes – conhecidos como
MICA e MICB – parecem influenciar a resistência ao SARS-CoV-2. Segundo
Castelli, a expressão desses genes normalmente aumenta quando as células estão
sob algum tipo de estresse, e isso leva à produção de moléculas que se ligam a
receptores das NK, sinalizando que tem algo errado com aquela célula.
“No
caso do MICA, o polimorfismo mais frequente nos indivíduos infectados
aparentemente faz com que a proteína codificada por esse gene seja produzida em
maior quantidade, possivelmente na forma solúvel, o que inibe a ativação das
células NK. No caso do MICB, entre os suscetíveis, foi 2,5 vezes mais frequente
uma variante associada à menor expressão do RNA mensageiro que codifica a
proteína ativadora de NK. Os dois caminhos, portanto, levariam à menor ativação
dessa barreira imunológica”, acrescenta o pesquisado. Ele destaca que, no
complexo LRC, foram identificadas variantes de interesse nos genes LILRB1 e
LILRB2. “Nos indivíduos infectados, foi cinco vezes mais frequente uma variante
do LILRB1 que, pela nossa análise, levaria à maior expressão de receptores que
inibem a ação das células NK.”
As
hipóteses referentes ao papel de cada polimorfismo na resistência ou
suscetibilidade ao SARS-CoV-2 foram elaboradas em parceria com um grupo de
pesquisadores do Instituto do Coração (InCor) liderados por Edécio Cunha Neto.
“De
modo geral, os indivíduos suscetíveis teriam variantes genéticas que
resultariam em uma resposta de células NK mais fraca, enquanto, nos
resistentes, a resposta seria mais robusta. Há diversos testes que podem ser
feitos para comprovar essa hipótese. Um deles é incubar o SARS-CoV-2 com
células do sangue periférico de indivíduos suscetíveis e resistentes e observar
como varia em cada caso a ativação das células NK”, sugere Cunha Neto.
Ainda
que os achados se confirmem, Cunha Neto lembra que há outros mecanismos da
resposta imune inata atuando em paralelo para determinar a resistência ao
vírus. “Um deles certamente é a capacidade das células de defesa de produzir
rapidamente interferons [uma classe de proteínas fundamental para a resposta
antiviral]”, afirma.
O
artigo Immunogenetics of
resistance to SARS-CoV-2 infection in discordant couples pode ser
lido na plataforma medRxiv.
A
pesquisa teve apoio da Fapesp.
*O texto foi originalmente
publicado por Agência Fapesp de acordo com a licença Creative Commons
CC-BY-NC-ND. O original pode ser lido aqui
Quarta-feira,11
de maio, 2021 ás 17:41