O
mundo subestimou a gravidade da pandemia. Em dezembro, quando chegaram da China
as primeiras notícias de um novo coronavírus, faltavam dados para avaliar a
gravidade da situação que o país enfrentava. Numa demonstração clara da
facilidade de contágio, o vírus espalhou-se em poucas semanas para os países
asiáticos e do Oriente Médio, entre os quais o Irã, destino de peregrinações
religiosas.
A
chegada dos primeiros doentes nos hospitais do Norte de Itália deveria ter
servido de alarme para os serviços de saúde do mundo inteiro. Mas não
aconteceu. No exato dia em que os italianos decretaram as primeiras medidas de
isolamento social nas cidades do Norte, para aliviar a pressão sobre as UTIs,
os espanhóis autorizaram uma passeata em comemoração do Dia Internacional da
Mulher, com 200 mil manifestantes nas ruas centrais de Madri.
Enquanto
Itália, Espanha, França, Reino Unido, Bélgica e outros países europeus tentavam
evitar que o número de pacientes graves esgotasse a disponibilidade de
aparelhos de ventilação mecânica, o coronavírus invadia a América do Norte. A
cidade de Nova York, com caminhões frigoríficos estacionados na porta dos
hospitais, tornou-se o epicentro da epidemia.
O
despreparo dos americanos era de tal magnitude que os hospitais de Manhattan,
capital financeira do mundo, foram surpreendidos sem máscaras cirúrgicas,
gorros e aventais, para proteger os funcionários. Cerca de 90% dos equipamentos
de proteção individual (EPIs) usados no mundo eram Made in China, exportador
que os oferecia a preços imbatíveis. Quando os chineses precisaram de EPIs para
sua imensa população, houve escassez.
No
fim de fevereiro morreu o primeiro cidadão brasileiro, seguido por uma série de
outros, infectados na Europa e nos Estados Unidos. A epidemia chegava pela
primeira vez num país com tamanha desigualdade social, que não dispunha de
quantidades suficientes de equipamentos de proteção, leitos hospitalares, UTIs
equipadas com ventiladores mecânicos e kits para a testagem em massa.
Como
em epidemias anteriores trazidas por quem havia viajado para o exterior, o
vírus espalhou-se na direção das periferias das nossas cidades, locais com ao
menos 15 milhões de habitantes. Sem testes disponíveis, ficamos reféns dos
caprichos virais. Era esperado que São Paulo e Rio de Janeiro, metrópoles que
recebem grande número de viajantes, fossem epicentros da epidemia brasileira,
mas não imaginávamos que Manaus, Belém, Recife e Fortaleza seriam atingidas ao mesmo
tempo, com tamanha virulência. Passamos a agir como bombeiros, tentando apagar
os incêndios que se disseminaram pelos grandes centros e, em seguida, pelos
interiores de todos os estados.
Para
impedir o caos, o Sistema Único de Saúde foi obrigado a tentar corrigir em
semanas a desorganização que a desídia de sucessivos governos provocou em anos.
Leitos hospitalares, hospitais de campanha e UTIs equipadas com aparelhagem em
falta no mercado internacional surgiram às pressas para receber os casos
graves. Foi preciso criar auxílios governamentais e distribuir doações da
sociedade, para evitar que a fome se instalasse entre os 40 milhões de
trabalhadores da economia informal.
Na
crise ficaram expostas as fragilidades do SUS, mas também sua capacidade de
reação rápida e, especialmente, a importância de termos o maior sistema único
de saúde do mundo, instituição que só valorizamos agora. No início da pandemia,
a experiência de outros países demonstrou que o isolamento social e a testagem
em massa da população eram medidas de contenção fundamentais. Semanas mais
tarde, a Organização Mundial da Saúde reconheceu a importância do uso de
máscaras para reduzir os índices de transmissão.
Na
área da prevenção, nós nos demos mal. Muito mal. Primeiro, porque não é fácil
isolar pessoas que vivem em habitações precárias, com crianças e adultos
forçados a compartilhar espaços exíguos. Depois, porque aos mais pobres faltam
recursos para sobreviver sem sair de casa.
Acima
de tudo, entretanto, faltou coordenação para um esforço nacional com
orientações claras à população e aos gestores de saúde para a adoção de medidas
preventivas que a ciência e a experiência mundial aconselhavam. Por mais absurdo
que possa parecer, o presidente brasileiro entendeu que o isolamento arruinaria
a economia e instalaria a fome no País, tormento que apregoou ser mais mortal
do que o vírus, sem nenhum dado que justificasse.
Não
contente com a interpretação enviesada, ele passou a provocar aglomerações,
andar acintosamente sem máscara, menosprezar a gravidade da doença e a defender
a indicação de um medicamento inútil, comportamentos que confundiram o povo,
politizaram a epidemia e colocaram o País em posição vergonhosa nas manchetes
da imprensa internacional.
O
resultado de tantos desencontros foi devastador. Enquanto esperávamos que o
pico da curva de mortalidade fosse seguido de queda abrupta do número de casos,
verificamos que veio seguido de um platô mantido com cerca de mil mortes
diárias, que nos faz atingir agora a triste marca de 100 mil brasileiros
mortos.
*Carta
Capital
Segunda-feira,
10 de agosto, 2020 ás 18:00