Novas
regras facilitam privatização de empresas públicas de distribuição de água e de
esgotamento sanitário
Durante
sessão por vídeo-chamada em plena pandemia do novo coronavírus, o Senado
Federal decidiu “passar a boiada” e pautar uma votação histórica nesta
quarta-feira 24: o novo marco regulatório do saneamento básico. O texto altera
a Lei 11.445 de 2007 e facilita a concessão e a privatização de empresas
públicas de saneamento básico. A matéria foi aprovada por 65 votos favoráveis e
13 contrários e vai a sanção do presidente Jair Bolsonaro.
O
projeto havia sido aprovado na Câmara dos Deputados, com a relatoria do
deputado federal Geninho Zuliani (DEM-SP). Ao chegar no Senado, foi para as
mãos do senador tucano Tasso Jereissati (PSDB-CE). O argumento dos defensores
do texto é que o estado não tem dinheiro para investir nas empresas públicas de
saneamento e, portanto, é preciso atrair investimentos privados para
universalizar o acesso à distribuição de água e ao esgotamento sanitário.
Na
sessão do Senado, parlamentares protestaram contra a votação e defenderam que a
pauta deveria ser discutida em uma sessão presencial. O senador Rogério
Carvalho (PT-SE), líder da bancada petista no Senado, posicionou-se em total
desacordo com apreciação da matéria, alegando “inoportunidade e açodamento”
porque “a matéria não se encontra devidamente discutida”.
Em
contraposição, o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) afirmou que a pauta passou
por 16 audiências públicas e foi tratada por 167 debatedores em 49 reuniões.
“Discordando respeitosamente do líder Rogério Carvalho, não procede a alegação
de que a matéria teria sido insuficientemente discutida ou pautada de forma
açodada”.
Ainda
assim, Alcolumbre deixou que as bancadas partidárias se manifestassem sobre
manter ou não a votação histórica, mesmo que o país esteja sob estado de
calamidade pública e as sessões remotas dificultem os debates. Entre os
representantes de bancadas que apoiaram Alcolumbre, estiveram os senadores
Fabiano Contarato (Rede-ES), Kátia Abreu (PP-TO), Major Olimpio (PSL-SP),
Zequinha Marinho (PSC-PA), Telmário Mota (PROS-RR), Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e
o líder do governo Bolsonaro no Senado, Eduardo Bezerra (MDB-PE).
Apenas
os representantes do PT e do PDT, Rogério Carvalho e Weverton (MA), orientaram
seus partidos a votarem contra a manutenção da pauta. A senadora Eliziane Gama
(Cidadania-MA) também manifestou preocupação com a falta de mais uma sessão
para debates, inviabilizada pela votação por videochamada. No entanto, ela liberou
a bancada para votar como quisesse, por divergências internas. A liderança do
Republicanos também liberou seus senadores.
especialistas
criticam o projeto e afirmam que a entrega do saneamento para as mãos dos
empresários não assegura a universalização do serviço. Ouvido em janeiro deste
ano, o relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos à Água e
ao Esgotamento, Léo Heller, alertou que o novo marco do saneamento pode
aprofundar a desigualdade e vai na contramão mundial de reestatização do setor.
Após
a aprovação nesta quarta-feira 24, Léo Heller afirmou a CartaCapital que
acompanhou novamente os argumentos dos defensores do projeto e avalia que houve
um “grande sofisma”. Para o pesquisador, os apoiadores do projeto partem de um
diagnóstico correto sobre as limitações do acesso ao saneamento, no entanto,
apontam para uma receita que “talvez agravará o problema”.
“É
muito claro que o projeto tem um viés privatista muito forte, que vai na
contramão das tendências internacionais, e um ambiente de regulação dos
serviços ainda muito frágil, com chances fortes de ser capturada pelos
prestadores de serviço. É um ambiente que pode favorecer muito a lógica de
maximização de lucros pelos prestadores privados, o que resultará em manter
excluídas aquelas populações que hoje já não têm acesso aos serviços”,
declarou.
A
ampliação da participação privada no setor de saneamento também é criticada
pelo secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao
Saneamento (Ondas), Edson Aparecido. Para o representante da entidade, a
abertura ao empresariado pode provocar o aumento nas contas de água e de coleta
de esgoto, além de prejudicar o acesso ao serviço em lugares longínquos, que
não despertam interesse ao mercado.
“Esse
projeto aprovado vai significar uma desestruturação importante do setor. Uma
delas é o fim do subsídio cruzado, que é um instrumento que permite que aquelas
cidades onde os serviços de saneamento são superavitários, do ponto de vista
econômico e financeiro, subsidiem aqueles que são deficitários, de forma a
garantir minimamente uma modicidade tarifária. Essa lei aprovada vai acabar com
esse subsídio e, com isso, a tendência é aumentar muito a conta de água e
ampliar as pessoas excluídas do acesso”, diz Aparecido.
O
engenheiro civil e ex-presidente da Empresa Baiana de Águas e Saneamento
(Embasa), Abelardo Oliveira, considerou que a aprovação do novo marco
representa um “fato histórico vergonhoso” para o Senado Federal. Para Oliveira,
o projeto é danoso porque a iniciativa privada tende a não atender populações
que moram em zonas rurais e pequenos municípios.
“Não
é um projeto para universalizar, mas para criar um monopólio privado no setor
de saneamento no país, mesmo considerando as experiências internacionais de
reestatização, como em Berlim, Paris e Budapeste. O setor privado não vai
trazer investimentos”, considerou. “Nós entendemos que o marco não toca nas
questões fundamentais, como a criação de um fundo nacional de universalização
para o saneamento básico.”
Parlamentares
da oposição também se manifestaram contra o projeto. O deputado federal Afonso
Florence (PT-BA) diz que as modificações podem “obrigar a privatização”. Ouvido
por CartaCapital, o parlamentar afirmou que trata-se de “especulação de setor
de rapinagem do mercado, querendo comprar barato empresas saudáveis, de boa
performance de gestão, para sucateá-las e revendê-las”.
“Isso
é um escândalo. Votar durante uma pandemia, que era para estar cuidando de
combater a covid-19, estruturar o Sistema Único de Saúde e garantir o
isolamento social, é uma demonstração de que eles sabem que isso [o marco] não
passaria, como não passou em duas outras oportunidades”, declarou.
Nas
redes sociais, também se opuseram ao projeto os deputados Alexandre Padilha
(PT-SP), Jorge Solla (PT-BA), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Glauber Braga (PSOL-RJ),
Marcelo Freixo (PSOL-RJ), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Fernanda Melchionna
(PSOL-RS), Túlio Gadêlha (PDT-PE), Lídice da Mata (PSB-BA), além de
ex-parlamentares como Roberto Requião (MDB-PR) e Manuela D’Ávila (PCdoB-RS).
Segundo
levantamento de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento
(SNIS), 35 milhões de brasileiros (16,38%) não têm acesso à água tratada e
cerca de 100 milhões (47%) não têm rede de coleta de esgoto. Os senadores
prometem que a facilitação das privatizações poderá universalizar o acesso ao
saneamento até 2033 e preveem investimentos de 500 bilhões de reais até 700
bilhões de reais.
*CartaCapital
Quinta-feira,
25 de junho, 2020 ás 11:00
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